ENTRE COLETES AMARELOS
– os genuínos, que por acaso são verdes
Andar pelas ruas de Paris e conversar com os parisienses, sobre os parisienses, sobre os portugueses, sobre os europeus, sobre ninguém.
Nunca há, claramente, um discurso comum, pois os povos não são comuns nem se vergam ao peso do discurso comum, mas têm coisas comuns nos seus universos mais ou menos sofisticados, lá isso têm.
Conversei, todavia, com o incomum, posso asseverar.
Pierre é professor de Filosofia e oferece-me um livro de Beatriz Sarlo, Sete Ensaios sobre Walter Benjamin, e eu levo-lhe a Arte Poética, de António Telmo. Lançamo-nos piadas: eu a querer enchê-lo de um autor que amava dar voltas ao espírito e ele a desdenhar da minha vocação tardia para aprender Filosofia – então és aluno outra vez, não te chega seres professor? Ao que eu respondo: aprender, aprender, aprender sempre, como disse alguém, mas esqueci-lhe o nome.
Pierre aponta-me uma passagem do texto de Benjamin, sobre Proust: Não se encontra a memória involuntária [de Proust] muito mais próxima do esquecimento do que daquilo que chamamos em geral de rememoração?
Atiro-lhe com Hannah Arendt: O mundo cultural abarca todo o passado relembrado por países, nações e pelo género humano. Quando os objetos imortais do passado se transformam em objeto de requinte social e individual, com uma posição social correspondente, perdem a sua mais importante qualidade: comover e extasiar o leitor ou o espectador perante o espetáculo que perpassa os séculos.
Um dia, diz-me Pierre, a verdadeira revolução será feita por milhões de esfaimados em loucura indomável, tendo como prioridade destruir não aqueles que lhes tiraram a dignidade mas os quadros do Louvre ou do Musée de Orsai. Nada há de mais violento do que a arte – ou a cultura – para quem morre de fome.
Filosofia não falta nas paredes de Paris. Paredes que escutaram as botas cardadas dos nazis, a agonia das suas vítimas, as vozes de Hannah Arendt, Sartre e Beauvoir, Foucault. Uma Filosofia que morreu em Vichy com Pétain, e no sangue de alguns velhos que ficaram em foto amarelecidas. O último desses velhos morreu aos 108 anos, num dos últimos dias de 2018: Georges Loinger, militante da resistência judia na França, que ajudou crianças a fugirem para a Suíça durante a Segunda Guerra. Estas paredes escutam agora jovens sem esperança, com causas nublosas – das claques desportivas aos gangues de bairro, ao voluntariado nos exércitos de assassinos do médio oriente -, marginais sem comida, pedintes a morrer de fome sem o menor protagonismo, coletes amarelos onde se confunde a história com a falta de memória.
Pierre dá-me outros exemplos, as Franças pobres dentro da França milionária. A França dos mendigos e de Marine Le Pen, a França dos pedintes e a de Macron.
Há muitas formas de atentar contra a dignidade humana, diz Pierre, enterra a boina na cabeça, puxa a gola do sobretudo que já viu melhores dias, atira com um pontapé da ponta da bota uma lata perdida ao lado do passeio.
Ao pontapé nada se resolve, nem armando as populações como esse que traiu a liberdade brasileira.
Voltamos a Paris e vemos uma frase num beco da cidade (Le Passage des Abbesses, em Montmartre, o mais boémio dos bairros, felizmente, assim se conserve): O povo começou por não entender Macron, Macron já tinha começado por não entender o povo, mas agora Macron não se entende; não entende nada do que diz ou do que pensa.
Na passagem de ano, Macron foi para a beira mar, de férias. Para Saint-Tropez, os coletes amarelos não apareceram, nem nos Champs-Elisées.
Passeamos por Paris.
As diferenças económicas são enormes, aqui. Da loja que fecha ao público porque tem um cliente único que quer gastar milhões em joias para oferecer à sua amada, às montras que se entrincheiram em placas à prova de vândalos, porque destruir propriedade alheia é um prazer de alguns desesperados e a bandeira agitada de alguns agitadores.
Paris é uma festa, escreveu Hemingway, que também escreveu esse livro maravilhoso O Adeus às Armas. Vendo o mundo de hoje, um título que não era uma profecia.
Pierre ri-se quando lhe digo que nunca provei Calvados, a bebida preferida do Inspetor Maigret nos livros policiais de Georges Simenon. Sabe-me à vida, quando me estreio: forte, amarga, doce, capaz de nos invadir. Se formos disponíveis para a experiência.
Alexandre Honrado
Historiador